Os desafios de uma tradução da Bíblia

Os desafios de uma tradução da Bíblia
A maioria das pessoas, cristãs ou não, tem pouco conhecimento das dificuldades presentes na tradução da Bíblia. Quem lê a Palavra de Deus bem impressa, bonita e com uma capa bem acabada não tem idéia de tudo que é necessário para tornar disponível o livro mais lido e vendido do mundo. 

Antes de tratarmos dessas dificuldades, devemos destacar que a tarefa de tradução da Bíblia é um ministério cristão. Lamentavelmente, poucos são os cristãos que percebem tal realidade de imediato. A grande verdade é que não é possível desenvolver quase nenhum outro ministério cristão sem as Escrituras Sagradas traduzidas na língua do povo. Não seria possível pregar, evangelizar, ensinar, discipular, e assim por diante, sem a Palavra de Deus em nossa língua. Por essa razão, devemos dar graças a Deus pela vida de homens como Jerônimo, Ulfilas, Lutero, Wycliffe, Almeida e muitos outros tradutores da Bíblia. Homens como esses dedicaram a vida para tornar compreensíveis as Escrituras a milhões de cristãos e não-cristãos incapazes de entender as línguas originais. 

Além disso, precisamos ressaltar que a tarefa de traduzir a Bíblia não é nada fácil. Muitos são os problemas e dificuldades enfrentados pelos tradutores. Com toda a certeza, para muitas pessoas essa tarefa parece até muito simples. Tal opinião, porém, está longe da verdade! Acreditam alguns que cada palavra do hebraico ou do grego encontra um vocábulo equivalente em português (e nos demais idiomas). Portanto, bastaria trocar as palavras da língua original pelos vocábulos em português para vermos encerrada a tarefa de tradução da Bíblia. Quem sabe, pensam alguns, um bom programa de computador até possa fazer isso. Infelizmente, isso não é verdade; o fato é que a tarefa de tradução é muito complexa. Nas linhas a seguir, procuraremos apresentar ao nosso prezado leitor os principais problemas e dificuldades enfrentados por um tradutor das Escrituras Sagradas. 



A dificuldade com os manuscritos antigos

Ao contrário do que muitos imaginam, não existe um manuscrito bíblico único do qual se possa traduzir o texto das Escrituras. Deus, em sua soberania, não quis deixar-nos o manuscrito original do Antigo e do Novo Testamento. Na verdade, o que temos à disposição são milhares de manuscritos posteriores, cópias feitas por escribas no decorrer dos séculos. Apesar disso, estamos absolutamente seguros de que a Bíblia é o documento antigo mais bem preservado da história da humanidade. Não há dúvida alguma de que possuímos manuscritos extremamente próximos dos originais. Todavia, um grande número de pequenas diferenças entre os diversos manuscritos exige avaliação cuidadosa por parte dos estudiosos para que se obtenha um texto mais próximo do original. Quando isso acontece, é necessário buscar a ajuda da crítica textual, ciência que desenvolveu critérios objetivos e científicos de avaliação do texto bíblico. Com base nos resultados desses estudos criteriosos, é possível optar corretamente por uma variante textual. Portanto, todo tradutor da Bíblia tem como primeiro problema avaliar as variantes textuais dos manuscritos bíblicos e tomar decisões com base nessa avaliação. Somente após esse primeiro passo será possível fazer uma tradução fiel ao texto original. 

No caso do Antigo Testamento, escrito quase inteiramente em língua hebraica¹, os principais manuscritos que precisam ser avaliados para uma boa tradução bíblica são o Texto massorético, o Pentateuco samaritano, a Septuaginta (famosa versão grega do texto do Antigo Testamento), a Versão siríaca,os Targuns aramaicos e os famosos manuscritos do mar Morto. Já no caso do Novo Testamento, há centenas de papiros antigos, alguns códices² (cópias completas) e milhares de manuscritos mais recentes. O resultado do trabalho de crítica textual mais confiável e respeitado pelo mundo acadêmico encontra-se nas edições da Biblia hebraica stuttgartensia (Antigo Testamento) e no Novum Testamentum graece (organizado por E. Nestlé e K. Aland)³.



A dificuldade da compreensão do texto

Os autores do texto bíblico e os escribas que fizeram as milhares de cópias dos manuscritos bíblicos antigos viviam num mundo muito diferente do nosso. Falavam línguas (hebraico, aramaico e grego) que ainda procuramos compreender, pertenciam a uma cultura muito diferente da nossa e não redigiam textos conforme a nossa atual expectativa. Por essa razão, nem todos os textos bíblicos são tão fáceis de ser entendidos, nem mesmo pelos peritos e especialistas nas línguas originais. Às vezes a construção da frase não segue a lógica gramatical comum da língua; em outras ocasiões ficamos em dúvida sobre onde dividir a frase (a pontuação do texto grego do Novo Testamento, por exemplo, não faz parte do original); em certas passagens bíblicas há palavras difíceis de ser compreendidas, pois o significado primeiro delas não cabe no contexto. Isso quer dizer que, mesmo depois de estabelecido o texto pelos especialistas, isto é, com todos os problemas de crítica textual resolvidos, nem sempre todos os textos bíblicos serão decifrados e entendidos com facilidade. É por isso que o leitor comum muitas vezes já constatou que alguns textos bíblicos encontram traduções diversas em diferentes versões bíblicas. Embora nem todos saibam, a verdade é que vários textos bíblicos admitem mais de uma tradução correta e, em muitos casos, alguns deles exigem atenção especial e um trabalho cuidadoso para serem de fato compreendidos. 

A dificuldade do significado das palavras

Há uma ciência dedicada ao estudo do significado das palavras. Essa ciência é chamada semântica. As principais fontes de pesquisa semântica são os dicionários e os léxicos acadêmicos aos quais recorremos quando queremos saber o significado de um termo. Isso não é tão difícil quando estamos pesquisando o significado de termos falados atualmente na língua portuguesa. No entanto, quando queremos descobrir o significado das palavras hebraicas, aramaicas e gregas, a tarefa é muito mais árdua. O significado exato de muitas palavras, principalmente hebraicas, ainda é um desafio para os estudiosos. Talvez a idéia mais comum seja que a etimologia é a melhor forma de descobrir o significado das palavras. Muita gente acredita que o significado de uma palavra está na sua raiz, na sua idéia original.

Em muitos casos isso é verdade. Na palavra cefalóide, por exemplo, é fácil entender o significado com base na etimologia. A primeira parte da palavra, cefal-, vem do grego kephalê, que significa “cabeça”; já o sufixo -óide expressa a idéia de forma. Assim, cefalóide significa o que tem forma de cabeça. Nesse caso, a etimologia da palavra permite-nos saber com exatidão o seu significado. Nem sempre, porém, tais associações etimológicas evidenciam o significado de determinado termo. Há casos como o da palavra hipopótamo, na qual os radicais gregos significam literal e etimologicamente “cavalo” (hipos) e “rio” (potamos).
No entanto, ninguém jamais concordará que “cavalo do rio” traduz com exatidão o significado de hipopótamo. Finalmente, descobriremos também palavras cuja etimologia até destoa do significado mais comum delas. É o caso da palavra embarque. Na origem, o termo era usado em referência ao ato de entrar em um barco. Todavia, hoje o termo é usado em referência ao embarque em um avião, ao embarque em um trem (ou no metrô). Diante desses exemplos, deve ficar claro que identificar o significado de uma palavra requer mais do que descobrir sua origem ou sua etimologia. Na verdade, cumpre levar em consideração a importância de outros fatores fundamentais, como veremos adiante. 

O fator sociológico

O uso de uma palavra é determinado pelos falantes de uma língua. Na verdade, as palavras não têm nenhuma relação intrínseca com os objetos da realidade. Funcionam como etiquetas que nós, os falantes da língua, colocamos nos objetos à nossa volta para podermos nos referir a eles. Assim, cada língua cria as próprias 
palavras de modo arbitrário. Além disso, essas palavras são muitas vezes criadas, independentemente da origem etimológica. Por essa razão, para que se entenda o significado de um termo, é muito importante descobrir em que sentido está sendo usado dentro de um texto, pois muitas vezes a origem ou a raiz não serão úteis na identificação do significado. O vocábulo grego logos, por exemplo, significava principalmente palavra quando traduzia um conceito semítico do mundo hebreu, mas para os gregos a idéia básica era a de razão. O tradutor do Novo Testamento terá de descobrir em que sentido o autor bíblico (Jo 1.1) estava usando a palavra logos.

Graças ao trabalho de exegetas e lingüistas, hoje temos léxicos (dicionários) que trazem uma avaliação semântica ampla e detalhada de cada termo hebraico, aramaico e grego. Um léxico especializado é uma das ferramentas indispensáveis para a compreensão e para a tradução dos termos bíblicos. 

O fator histórico

O aspecto sociológico da semântica leva-nos diretamente ao aspecto histórico. O uso das palavras bem como o seu significado sofrem variações de acordo com aépoca em que o texto foi escrito. No caso dos estudos veterotestamentários, os especialistas fazem distinção entre as diversas fases da língua hebraica: o hebraico arcaico, o pré-exílico e o pós-exílico. A verdade é que há diferença de vários séculos entre um texto e outro. Diante desse fato, não há dúvida de que a mesma palavra pode ter significados diferentes em épocas distintas. 

No caso do Novo Testamento, apesar de todo o texto ter sido escrito em grego, sabemos hoje que não era o grego clássico (dialeto ático). Não é possível compreender o significado dos termos gregos do Novo Testamento conhecendo apenas a cultura e a língua helênica clássicas. Além de ser um grego comum (coiné), o grego neotestamentário é também um grego semitizado, ou seja, muito influenciado pela cultura judaica e pelo pensamento hebraico. Somente com o conhecimento da história da cultura e das línguas bíblicas poderemos conhecer o significado das palavras da Bíblia. Isso nos ajudará a não conferir a esses termos um significado não pretendido pelo autor original. 

O fator literário

Um estudo aprofundado das Escrituras comprovará que não podemos considerar o texto bíblico homogêneo do ponto de vista literário. Cada autor usa certos termos de maneira característica. Nem sempre a mesma palavra é usada no mesmo sentido por todos os autores. Cada autor bíblico escreve com tendências teológicas específicas, a um público determinado, dentro de um panorama histórico particular. Uma avaliação da terminologia usada por Lucas, por João e por Paulo mostra que cada um deles detém particularidades lingüísticas e teológicas que precisam ser consideradas numa tradução bíblica. Além disso, é preciso frisar que os diversos autores bíblicos escreveram em estilos literários distintos.

A poesia hebraica, por exemplo, não se caracteriza por rima, mas sim por paralelismos. Há construções poéticas como inversões, quiasmos, acrósticos alfabéticos, aliterações etc., que dificilmente podem ser de todo recuperadas numa tradução. Além disso, temos o problema das expressões idiomáticas e das figuras de linguagem. Metáforas, símiles, sinédoques, metonímias são usadas amplamente na Bíblia. Algumas dessas figuras, se traduzidas ao pé da letra, podem não comunicar nada ou até expressar uma idéia errada. Pretendemos desenvolver essa questão com maiores detalhes mais adiante. Todavia, vale a pena citar aqui alguns exemplos. 

Em Gênesis 34.30 o hebraico diz: 
30 E disse Jacó a Simeão e a Levi: Vocês me trouxeram problemas, ao fazer-me cheirar mal entre os moradores da terra. 
Cheirar mal é uma expressão que significa odiar. O sentido aqui é atrair o ódio dos moradores da terra (região). 

Em Salmos 41.9 o hebraico diz: 
9 Até o meu melhor amigo (homem da minha paz), em quem eu confiava e que partilhava do meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar. 
O significado de levantar o calcanhar contra é voltar-se contra. 

A dificuldade decorrente da peculiaridade das línguas bíblicas

Quando alguém tentar traduzir um livro do francês ou do inglês para o português encontrará uma tarefa não muito difícil. As três línguas são indo-européias, sendo muito semelhantes em estrutura e em vocabulário. Até mesmo no inglês, pertencente ao ramo das línguas germânicas, cerca de metade do vocabulário é formado por palavras de origem latina. Quando alguém lê uma obra acadêmica em inglês, por exemplo, descobrirá que essa proporção é ainda maior, pois os termos gregos e latinos são a base do vocabulário científico e acadêmico de muitas línguas européias, mesmo de muitas que não são classificadas como neolatinas.

Todavia, quando se faz uma tradução do grego bíblico e do hebraico (ou do aramaico) para o português, a tarefa é muito mais difícil, pois a diferença cultural e lingüística é muito grande. O início das dificuldades reside no vocabulário das línguas bíblicas. Os vocábulos muitas vezes não têm correspondentes satisfatórios em português.
O campo semântico das palavras é muito particular e até mesmo estranho para nós. Especialmente no caso do hebraico, as palavras dessa língua semítica expressam conceitos bem concretos. Idéias abstratas são muito raras. A expressão “fazer uma aliança”, por exemplo, é literalmente em hebraico “cortar uma aliança”. Por essa razão é impossível fazer uma tradução totalmente literal da Bíblia. Muitas frases não teriam sentido em português. Uma das palavras muito importantes do Antigo Testamento, por exemplo, é o termo Sheol, traduzido por Hades no grego do Novo Testamento. Em algumas versões antigas essa palavra foi traduzida por“inferno” em quase todos os versículos em que o termo aparece. Sem dúvida alguma a tradução uniforme do termo não é recomendável. O termo refere-se de fato ao “mundo dos mortos” e, em muitos contextos, refere-se de modo concreto à “sepultura”. Assim Sheol (e Hades) pode ser traduzido, dependendo do contexto, por várias palavras diferentes. As possibilidades de tradução são: “profundezas”, “morte”, “sepultura”, “mundo dos mortos” e “inferno”.
No caso do hebraico, uma característica interessante da língua é a sua concisão. A antiga língua dos hebreus usava poucas palavras para dizer muito. Os verbos de ligação são dispensados, os pronomes pessoais estão embutidos na maioria das formas verbais, e algumas preposições e sufixos de posse aparecem anexados aos substantivos. Um exemplo disso pode ser visto em Salmos 15.2. O texto hebraico diz literalmente (sete palavras): 

Andante integramente e praticante (da) justiça e falante (da) verdade no seu coração. 

Como se vê, é muito difícil entender o sentido do texto, traduzido aqui bem literalmente. Depois de traduzido adequadamente (19 palavras em português), o texto fica assim: 

Aquele que é íntegro em sua conduta e pratica o que é justo, que de coração fala a verdade...

Outra questão que merece cuidado é o verbo grego e hebraico. Estamos muito acostumados à idéia de tempo verbal em português. Para muitos é surpreendente descobrir que o que caracteriza o verbo no grego e no hebraico não é principalmente o tempo do verbo, mas sim o seu aspecto.
4 Em hebraico, por exemplo, importa mais se a ação é acabada ou não do que o tempo do verbo. Em muitas passagens bíblicas somente o contexto determinará se o verbo será traduzido no futuro, no presente ou no passado. O grego conhece formas verbais peculiares e muitas vezes difíceis de ser traduzidas adequadamente. Entre elas destacam-se o aoristo, o modo optativo e a voz média do verbo. 

Finalmente, precisamos destacar a grande diferença entre a estrutura sintática das línguas bíblicas e a do português. A ordem comum da frase hebraica, por exemplo, é inversa: começa com o verbo e depois traz o sujeito. As conjunções que intermediam palavras e orações detêm funções sintáticas muito diversificadas e podem ser traduzidas de maneiras distintas. Os tradutores terão de descobrir se determinada conjunção está sendo usada de modo enfático, explicativo, condicional, recitativo etc. Essa tarefa muitas vezes exige estudo minucioso. O texto grego, por exemplo, usa períodos longos, sem ponto-final. Um caso famoso é o do texto de Efésios 1.3-14. Não é possível conservar a legibilidade de um texto assim em português contemporâneo sem reorganizar a pontuação. Dado o caráter introdutório desse livro, não nos estenderemos mais sobre o assunto. Somente um estudo da sintaxe hebraica e grega poderá revelar a complexidade dessas diferenças ao amigo leitor. 

Conclusão

Diante dessa avaliação, cremos que o nosso leitor já tem uma idéia razoável da complexidade da tarefa de traduzir a Bíblia. Estamos certos de que essa breve introdução o ajudará a entender o valor e a importância da tradução da Bíblia. Portanto, cada um de nós deve: 

1. Agradecer a Deus pelo fato de termos sua Palavra disponível em português. 
2. Valorizar esse importante ministério e orar pelos milhares de tradutores que trabalham em todo o mundo nessa obra tão importante. 
3. Ser mais flexíveis e humildes, entendendo que a dificuldade dessa tarefa comprova que toda tradução é imperfeita. 
4. Descobrir que as dificuldades bíblicas não devem abalar nossa fé; ao contrário, descobrimos que Deus é sábio e maior do que nós. A Palavra de Deus é mais profunda e rica do que imaginamos.


¹ Apenas uma parte de Daniel e de Esdras, e um versículo de Jeremias foram escritos em aramaico. 
² Os mais famosos são o Sinaítico, o Vaticano e o Alexandrino 
³ Publicados pela Sociedade Bíblia Alemã e pelas Sociedades Bíblicas Unidas. 
4 Segundo a maior parte dos especialistas. Nem todos os estudiosos, porém, pensam assim.

Fonte: http://www.dc.golgota.org/nvi/nvi.html#08


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